Em menos de 12 anos, as stablecoins deixaram de ser uma experiência cripto de nicho para se tornar uma classe de ativos superior a US$ 280 bilhões, com crescimento acelerado observado até setembro de 2025. Essa ascensão se deve não só à demanda crescente, mas também ao aumento da clareza regulatória, com a recente aprovação do GENIUS Act nos Estados Unidos e da MiCA na União Europeia. Atualmente, as stablecoins são reconhecidas por governos centrais ocidentais como componentes legítimos do novo sistema financeiro. Curiosamente, as empresas emissoras de stablecoins não são apenas “estáveis”; elas são altamente lucrativas. No cenário de juros elevados nos EUA, a Circle, emissora do USDC, registrou receita de US$ 658 milhões no segundo trimestre de 2025, majoritariamente oriunda dos juros sobre reservas. A empresa tornou-se lucrativa em 2023, com lucro líquido de US$ 271 milhões.
Fonte: tokenterminal.com, Oferta circulante atual de stablecoins
Essa lucratividade atraiu novos concorrentes. Da USDe algorítmica da Ethena à USDS da Sky, diferentes emissores despontam para desafiar o domínio de Circle e Tether. Com essa mudança de cenário, os líderes Circle e Tether estão migrando para o desenvolvimento de suas próprias infraestruturas Layer 1 (L-1), com foco em controlar as infraestruturas financeiras do futuro. Essas novas infraestruturas financeiras são projetadas para ampliar vantagens competitivas, capturar mais taxas e remodelar a movimentação do dinheiro programável pela internet.
A grande questão é: será que gigantes como Circle e Tether conseguirão manter sua liderança diante de disruptores como a Tempo (entrante focada em ativos não estáveis)?
Na essência, uma blockchain L-1 é o protocolo base que sustenta todo o ecossistema — processando transações, liquidações, consenso e segurança. Para o público técnico, pode ser comparada ao sistema operacional (SO) do universo cripto (exemplo: Ethereum ou Solana), sobre o qual todas as aplicações são construídas.
Para emissores de stablecoins, investir em L-1 significa integração vertical. Ao invés de depender de blockchains de terceiros (Ethereum, Solana, Tron) ou de soluções L-2, essas empresas avançam com a construção de suas próprias infraestruturas para maximizar valor, ampliar controle e adequar-se à regulamentação.
Para entender a corrida pelo domínio, analisemos como Circle, Tether e Stripe estruturam suas L-1s, mantendo semelhanças essenciais, mas traçando caminhos distintos. Entre as similaridades, destacam-se:
Diferenciais principais:
Identifico três tendências marcantes:
Para emissores de stablecoins, lançar uma L-1 própria é uma estratégia para conquistar confiança. Ao assumir controle sobre a infraestrutura, sem depender exclusivamente de Ethereum, Solana ou Tron, Circle e Tether conseguem fornecer caminhos prontos para conformidade regulatória conforme o GENIUS Act (EUA) e MiCA (UE).
A Circle já posiciona o USDC como produto regulado, exigindo frameworks KYC (Conheça Seu Cliente) e AML (Prevenção à Lavagem de Dinheiro) para entidades responsáveis por resgates de USDC para USD. A Arc, nova Layer 1 anunciada, amplia essa proposta com transparência auditável combinada a funções de privacidade, tornando-se sólida candidata à adesão institucional. Tether segue estratégia semelhante com as redes Stable e Plasma, buscando ser a infraestrutura de bancos, corretoras e gestores de ativos.
A oportunidade central está no mercado de câmbio (FX). Utilizando a Arc, com liquidação subsegundo, mais de 1 mil TPS e funcionalidades de câmbio, bancos e formadores de mercado podem liquidar operações FX instantaneamente. Isso abre portas para acessar o mercado diário de FX de US$ 7 trilhões, criando efeitos de rede poderosos. Stablecoins como USDC e EURC podem liderar como ativos de liquidação nativos, fidelizando desenvolvedores ao ecossistema. Também surge a possibilidade de aplicativos DeFi institucionais com sistemas RFQ, aproveitando smart contracts para reduzir riscos e garantir agilidade na liquidação.
Este cenário considera um oráculo Chainlink como exemplo ilustrativo.
Diagrama que mostra o fluxo de operações de um trader operando pela L-1 da Circle
Imagine um trader de FX em Paris fazendo troca de US$ 10 milhões de USD para EUR usando pares USDC/EURC diretamente na Arc, via Malachite. Usando um oráculo Chainlink, as taxas em tempo real (ex: 1 USD = 0,85 EUR) são consultadas e a troca de US$ 10 milhões em USDC para EURC ocorre em menos de um segundo, reduzindo a liquidação FX tradicional de T+2 para T+0.
Fonte: Stablecoin Growth and Market Dynamics, Vedang Ratan Vatsa
Pesquisas confirmam esse caminho. Conforme Vedang Ratan Vatsa, uma oferta maior de stablecoins está fortemente relacionada ao aumento de volume de transações, indicando liquidez mais profunda e maior adoção. Como maiores emissores do mundo, Tether e Circle tendem a liderar essa captação institucional.
Mas há desafios sérios na integração do TradFi à infraestrutura blockchain. É preciso coordenar reguladores, bancos centrais e legislações locais — um processo que pode se arrastar por anos. A emissão de stablecoins para moedas variadas (como um token XYZ para ativos emergentes) dificulta ainda mais, com adesão baixa em mercados em desenvolvimento. Mesmo superando essas barreiras, bancos e formadores de mercado podem hesitar diante da migração de sistemas críticos e do aumento de custos, pois nem todas as moedas estão no ambiente on-chain, o que força a manutenção de sistemas paralelos. Com múltiplos emissores — Circle, Tether, Stripe e bancos lançando blockchains próprias — cresce o risco de fragmentação da liquidez, dificultando que uma infraestrutura alcance escala e liquidez para dominar o mercado global de FX de US$ 7 trilhões diários.
Ao atraírem o setor financeiro tradicional com possibilidades programáveis, as Layer 1 podem desestabilizar gigantes como Mastercard, Visa e PayPal, oferecendo liquidação instantânea e baixo custo para uma série de aplicações descentralizadas. Diferente dos sistemas fechados, essas infraestruturas são abertas e programáveis, oferecendo às fintechs infraestrutura flexível, como uma nuvem pública (AWS) em vez de servidores próprios de pagamentos. Isso viabiliza soluções de remessas internacionais, pagamentos automatizados com IA e ativos tokenizados — tudo com taxas baixíssimas e liquidação em segundos.
Por exemplo, um desenvolvedor pode lançar um aplicativo descentralizado (dApp) de pagamentos em uma cadeia de stablecoin para liquidação instantânea. Comerciantes e consumidores aproveitam transações rápidas e baratas, enquanto Layer 1 como Circle, Tether e Tempo se tornam infraestrutura indispensável. A diferença central é a eliminação dos intermediários, como Visa e Mastercard, permitindo maior apropriação de valor por desenvolvedores e usuários.
Contudo, os riscos existem. Quanto mais emissores e empresas de pagamentos lançarem suas Layer 1, maior o risco de fragmentação. Comerciantes podem lidar com múltiplos tokens USD em diferentes redes, sem interoperabilidade fácil. O Cross-Chain Transfer Protocol (CCTP), da Circle, busca reunir um USDC único entre redes, mas se limita ao ativo da Circle. Em um mercado oligopolista, a interoperabilidade pode virar o maior gargalo.
A chegada da Tempo, Layer 1 neutra em stablecoins incubada pela Stripe e Paradigm, reforça essa tendência. Diferente de Circle e Tether, a Stripe não lançou token próprio, e a Tempo suporta várias stablecoins para taxas e pagamentos via market maker automatizado (AMM) interno. Esse modelo neutro pode atrair desenvolvedores e comerciantes em busca de flexibilidade, dando vantagem à Stripe num espaço dominado por empresas cripto-native.
Com a ascensão das Layer 1, muda-se a estrutura de mercado. Circle e Tether, atualmente, detêm cerca de 89% das emissões de stablecoins em setembro de 2025 — com Tether em 62,8% e Circle em 25,8%. Ao lançar suas próprias Layer 1 (Arc e Stable/Plasma), reforçam o domínio ao criar barreiras elevadas de entrada. Plasma, por exemplo, arrecadou US$ 1 bilhão em depósitos em cofres para cap de venda de tokens, elevando o patamar. A concentração de mercado, medida pelo Índice Herfindahl-Hirschman (HHI), ultrapassa 4.600 (62,8² + 25,8² ≈ 4.466), bem acima do limiar de 2.500, que nos mercados tradicionais dispara o alerta antitruste.
Porém, surge uma ameaça silenciosa: as Layer 1 neutras em stablecoins. Tempo, da Stripe, reduz barreiras para comerciantes e riscos de concentração para reguladores. Se a neutralidade ganhar força, as barreiras de proteção dos tradicionais podem virar fraquezas, com Circle e Tether perdendo efeitos de rede e market share. O duopólio atual pode ceder espaço para uma estrutura oligopolista, com novas infraestruturas conquistando nichos.
Em resumo, as stablecoins já são um setor de US$ 280 bilhões e os emissores aproveitam os benefícios do crescimento. A ascensão das Layer 1 lastreadas por stablecoins evidencia três tendências: (1) aproximação do setor financeiro tradicional às infraestruturas cripto, expandindo o mercado global de FX, (2) transformação dos pagamentos com a eliminação de intermediários como Mastercard e Visa e (3) redefinição da estrutura de mercado — do duopólio (HHI 4.600) ao oligopólio. Juntos, esses movimentos mostram que emissores como Circle e Tether, além de novos participantes como Tempo da Stripe, estão indo além de ser pontes entre cripto e fiat e se posicionam como pilares da infraestrutura financeira do futuro.
Resta a dúvida aos leitores: Como essas infraestruturas vão conquistar o ajuste produto-mercado? Arc, da Circle, Stable/Plasma, da Tether, ou o desafiante neutro Tempo liderarão — seja por volume de transações ou adoção institucional? Apesar das oportunidades e da fragmentação de liquidez, os desafios permanecem. Compartilhe sua opinião!